A escritora relembra momentos marcantes de sua trajetória, como a amizade com Clarice Lispector e Hilda Hilst, a viagem à China em 1960, o encontro com Montero Lobato e a agonizante espera pela liberação de ‘As meninas’ pela censura
Para João Ubaldo Ribeiro, é a grande dama da literatura brasileira. Milton Hatoum destaca a magnitude e a perenidade dos contos de Antes do Baile Verde e Seminário dos Ratos, livros publicados nos anos 1970. Já Ignácio de Loyola Brandão garante não “existir, na literatura brasileira, uma pessoa mais adorável”. Próxima dos 90 anos (completa na sexta-feira, dia 19), a escritora Lygia Fagundes Telles é praticamente uma unanimidade. Autora de uma obra de estilo elegante, ecos machadianos e um permanente estado de espírito que permite manipular a escrita com firmeza e serenidade, Lygia sempre oferece ao leitor a oportunidade de pensar sobre suas existências.
Basta conferir sua obra, reeditada com esmero pela Companhia das Letras desde 2009. Muitos livros se tornaram clássicos, como o romance As Meninas, de 1973, “livro até hoje muito lido nas escolas, pois reflete o impasse de jovens que viveram numa época obscura”, observa Milton Hatoum. “O destino das personagens é, de algum modo, o destino de uma geração movida por sonhos de liberdade sexual e política, ou por um desejo de ascensão social. É um romance que opera com o equilíbrio entre o psicológico, o social e o político. Sem dúvida, um dos melhores livros da autora.”
De fato, a literatura sempre foi, para Lygia Fagundes Telles, um caminho para mudar o mundo. Pelas letras, ela transmite aos leitores a aventura de novos conhecimentos – seja pelos detalhes do cotidiano, pelo devaneio particular ou mesmo pela vida da imaginação. “É uma escritora que se dedica aos temas universais: a loucura, o amor, a paixão, o medo, a morte”, observa o crítico José Castello, autor do posfácio da nova edição de Seminário dos Ratos.
Mesmo assim, é uma mulher ligada ao cotidiano. Em seu apartamento, em São Paulo, vive rodeada de boas lembranças: fotos dos dois maridos (Goffredo da Silva Telles e Paulo Emílio Salles Gomes), do filho querido Goffredinho, de amigos e de viagens inesquecíveis. Nos últimos meses, Lygia recebeu o Sabático para reavivar lembranças, escrevendo ou falando, como as que vêm a seguir.
Clarice Lispector
Era uma grande amiga, além de excepcional escritora. Sempre me dizia: “Liginha, não sorria nas fotos. Ninguém leva a sério mulher que aparece sorrindo na fotografia!”. Também era ótima companhia em viagens. Certa vez, em Cali, na Colômbia, abandonamos os debates para ficar no bar, bebendo champanhe (ela) e vinho tinto, enquanto ríamos gostosamente e ela pedia a minha opinião sobre quem era mais indiscreto nas suas traições, o homem ou a mulher. Aliás, na viagem de ida, quando o avião balançava muito e eu estava preocupada, Clarice se voltou para mim e disse: “Não tenha medo porque o avião não vai cair. Minha cartomante disse que eu morreria deitada, portanto, fique tranquila”. Esse misticismo era contagiante. Certa noite, quando eu dormia em um hotel da cidade de Marília, onde participava de um seminário, fui acordada por uma andorinha desgarrada, que entrou voando no meu quarto. Levei um susto, mas logo estranhei a forma como o animal me encarava, muito amigável. Logo, consegui que o pássaro saísse pela janela. No dia seguinte, fui informada que Clarice morrera naquela noite. Só consegui dizer, baixinho: “Eu já sabia”.
Ato da escrita
Para escrever, você precisa se dedicar de corpo e alma a seu personagem, a seu enredo e à sua ideia. É preciso que seja um ato de amor, uma doação absoluta, e é impossível sair do transe enquanto não dá a história por acabada, enquanto não decifra o humano. O detalhe é que o ser humano é indefinível. Por mais que tente, você não consegue defini-lo totalmente. O ser humano é inalcançável, inacessível e incontrolável, ele está sujeito a esses três ‘Is’.
Mao Tsé-tung
Era um homem atarracado, com os olhos muito puxados e uma expressão quase imutável. Em nossa visita à China (éramos vários escritores), nos presenteou com um livro de poemas, escrito por ele mesmo, em francês e chinês. Os versos até que eram bons.
Monteiro Lobato
No longo corredor que me pareceu sombrio, o carcereiro avisou que a visita teria que ser breve, mesmo porque já tinha um visitante lá dentro. Entrei na saleta fria. Uma mesa tosca, algumas cadeiras de palhinha. Em torno da mesa, Monteiro Lobato de sobretudo preto, um longo cachecol de tricô enrolado no pescoço. Sentado ao lado, o visitante de terno e gravata, calvo, os olhos azuis. Monteiro Lobato levantou-se abotoando o sobretudo e veio ao meu encontro com um largo sorriso. Era mais franzino e mais baixo do que eu imaginava. Tinha os cabelos grisalhos bem penteados e o tom da pele era de uma palidez meio esverdeada, mas os olhos brilhavam joviais sob as grossas sobrancelhas negras. Ofereceu-me a cadeira que estava entre ambos. “Este aqui é um caro editor”, apresentou-o e disse o nome do editor que não guardei. Sem saber o que dizer, fui logo enumerando os seus livros que já tinha lido e que ocupavam uma prateleira da minha estante, “ah! as paixões da minha adolescência”: Narizinho Arrebitado, Tia Nastácia, o Jeca Tatu, as memórias daquela boneca de pano, a Emília, o Saci-pererê…
Ele me interrompeu com um gesto afetuoso, eu sabia que era avesso às homenagens e assim entendi a razão pela qual desviou a conversa, afinal seus personagens não eram culpados pela sua prisão, mas sim as cartas que andou escrevendo, ou melhor, as denúncias que andou fazendo através dessas cartas porque livros os governantes não liam mesmo. Deviam ler, mas não liam e daí a ideia das cartas curtas e diretas. “Estou aqui no meio de bandidos, tinha que me calar ao invés de avisar que o petróleo é nosso. A mocinha já entendeu, hein? Sei que é estudante, mas o que está estudando?” Quando contei que estava na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, ele abriu os braços num gesto radiante: “Pois foi lá que eu me formei!”. Só que na nossa turma não tinha meninas, só marmanjos. “Ah! Se tivesse aqui um vinho a gente poderia brindar estes doutores! Quer dizer que a mocinha vai advogar?” Comecei gaguejando, bem, era difícil explicar, eu era uma estudante pobre, queria me formar para ter um diploma e assim anunciar um bom emprego. Na realidade queria ser escritora, escrever contos, romances…
Monteiro Lobato voltou-se para o editor e tocou-lhe no ombro. “Olha aí, a mocinha é vidente! Já está sabendo que escrever neste país não dá dinheiro, escritor morre pobre e ignorado. Então ela é uma vidente!”, disse e tirou do bolso do sobretudo um pequeno bloco e uma caneta. “Vamos, deixe o seu nome e endereço, o meu amigo aqui vai lhe enviar algumas reedições dos meus livros, vamos, diga logo antes que o carcereiro apareça.”
Faculdade de Direito
Decidi ser advogada por causa do meu pai, Durval, que também se formou na São Francisco. Era um homem lindo, adorável, mas que tinha um grande pecado: era um jogador contumaz. Adorava roleta. Ele me levava a um cassino em Santos e, enquanto eu, pequena, tomava uma enorme taça de sorvete, meu pai jogava as fichas e as perdia, uma a uma. Quando íamos embora, derrotados, ele sempre dizia: “Hoje perdemos, mas amanhã a gente ganha”. Eu o admirava muito. Mas não foi fácil estudar na São Francisco. Na minha turma, éramos apenas seis mulheres entre mais de cem homens. Todas virgens! Certa vez, um dos meus colegas me perguntou: ‘O que vocês, mulheres, querem aqui na faculdade? Casar?’ Respondi, de bate-pronto: ‘Também!’ Mal sabia ele que me casaria com um dos professores (Goffredo da Silva Telles).
Hilda Hilst
Verão de 1952. Eu já estava casada com Goffredo quando a Hilda foi nos visitar no Rio. Ficou hospedada no Hotel Olinda, em Copacabana. Ela usava um maiô claro de tecido acetinado, inteiriço, na moda, os discretos maiôs inteiriços. Lembro que tinha no pescoço um longo colar de conchinhas. Falou-me dos novos planos, tantos. Estava amando e escrevendo muito, quando ela se apaixonava a gente já sabia que logo viria um novo livro celebrando o amor. Nesse sábado, tínhamos marcado no nosso apartamento um encontro com alguns amigos, Carlos Drummond de Andrade, Cyro dos Anjos, Breno Accioly, José Condé… Hilda Hilst chegou toda de preto, os cabelos dourados soltos até os ombros. Falou em Santa Teresa d’Ávila, a do “amor duro e inflexível como o inferno”. Pedi-lhe que dissesse o seu poema mais recente. Então, eu me lembro, Cyro dos Anjos cumprimentou-a com entusiasmo e começou a examinar a pequena palma da mão que ela lhe estendeu, ele sabia ler o destino nas linhas da mão.
Livraria Jaraguá
Segunda Guerra Mundial, ano de 1944. Eu era uma mocinha de boina, morava com a minha mãe num apartamento na Rua Sete de Abril e duas vezes por dia passava pela Rua Marconi, quando ia para as aulas na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. E quando retornava no final da tarde, emendava a manhã com o meu expediente de trabalho na Secretaria da Agricultura, onde colava retratos, era uma estudante pobre.
Nessa Rua Marconi ficava a bela Livraria Jaraguá, de Alfredo Mesquita, e onde se reuniam as mais importantes personalidades da tranquila cidade de São Paulo, comoção da minha vida! – no desabafo ardente de Mário de Andrade. Esse mesmo Mário de Andrade que foi um dos primeiros frequentadores da livraria nos encontros no fim da tarde, ele o Oswald de Andrade. A esses intelectuais mais velhos (Sérgio Milliet, Lívio Xavier, Sérgio Buarque de Hollanda) foi se juntando um grupo de jovens, os fundadores com Alfredo Mesquita da revista Clima: Antonio Candido, Lourival Gomes Machado, Paulo Emilio Salles Gomes, Décio de Almeida Prado e Ruy Coelho, ah, tanta gente e tantos projetos. Tantos planos. Era a elite intelectual da Faculdade de Filosofia, os jovens herdeiros da Semana de 22 e aos quais Oswald de Andrade apelidou de chato-boys: “Com oito anos eles começaram a ler Marcel Proust e com dez já discutiam Spengler, ai! não aguento tamanha precocidade!”, disparava Oswald de Andrade e Alfredo Mesquita dava aquela risadinha cascateante.
Paulo Emílio Salles Gomes
Meu segundo marido era um homem encantador, inteligente, vibrante, irônico. Ele me apelidou de Cuco, brincadeira com o relógio de uma velha tia cujo cuco sempre cantava as horas com atraso – eu sempre me atrasava para nossos compromissos. Também apelidou meu filho Goffredinho de Cré, pois, nas aulas de francês, quando o garoto errava feio, Paulo disparava: ‘Crétain!” (cretino). Paulo sempre foi um grande incentivador da minha obra, especialmente nos momentos mais difíceis. Como em 1973, quando publiquei As Meninas. Era época pesada da ditadura militar e eu me inspirei, entre outras coisas, num panfleto que detalhava a violência física sofrida por um preso político. Coloquei isso no meio da trama e fiquei apreensiva quando o livro foi enviado para a censura. Enquanto aguardava, nervosa, o veredicto, fui surpreendida pela chegada, alegre, de Paulo, em nosso apartamento. Ele trazia uma garrafa de vinho e estava muito disposto a comemorar. Logo explicou: aborrecido com uma história em que não acontecia nada, o censor só lera algumas páginas, não chegara àquele ponto da tortura e liberava a obra.
Dom Casmurro
Eu estava na Faculdade de Direito quando li pela primeira vez Dom Casmurro, uma edição que comprei em um sebo. Achei, então, que Capitu era uma santa, uma pobrezinha; e ele, Bentinho, um neurótico, um doido varrido, histérico. Conversei com as minhas colegas, éramos seis mulheres, sobre a leitura, e eu dizia: “Não pode isso, esse homem é um louco, neurastênico, desesperado, casado com uma santa em que via a traição.” Enfim, não li mais o livro. A segunda leitura foi na maturidade. Estava casada com o Paulo Emílio e preparávamos Capitu (roteiro filmado por Paulo César Saraceni e lançado pela Cosac Naify). Reli o livro e disse ao Paulo: “Mudei completamente de ideia, a mulher traiu ele, sim, o filho não era dele”. E ele me perguntou: “Você tem certeza? Cuco, você não pode ser juiz, temos que suspender o juízo, como o próprio Machado queria.” E eu: “Mas eu não posso suspender, esse homem é um doido, coitada dessa mulher”. “Cuco, não vista a toga de juiz. Vamos apresentar o roteiro como está no livro. Você está ficando com a cara do Bentinho!” “E você então está me traindo!” Capitu traiu Bentinho? Eu já não sei mais. Minha última versão é essa, não sei. Acho que, enfim, suspendi o juízo. No começo, ela era uma santa; na segunda, um monstro. Agora, na velhice, eu não sei.