Para Michael Sandel, filósofo e professor da Universidade Harvard, estamos caminhando para o que ele chama de sociedade de mercado. Nela, empresas pagam mendigos para guardar lugar na fila, pais oferecem dinheiro para que seus filhos tenham boas notas na escola, contrata-se uma empresa para pedir desculpas para uma pessoa ofendida, paga-se fortuna para um cambista por um ingresso da final da Copa e, em casos mais graves, votos e órgãos são vendidos.
O mercadismo
O problema é que transformar tudo em mercadoria tem um preço. “Quando o dinheiro toma um papel cada vez maior na política e na vida social, a democracia está em risco”, disse Sandel em entrevista a GALILEU. “Ela depende de importantes valores que não estão no mercado: espírito cívico, educação, investir em espaços públicos onde cidadãos de classes sociais diferentes se encontram.” Esse fenômeno vem se repetindo, em maior ou menor escala, em várias regiões do mundo. Nos EUA e na Europa, os dois grandes pilares do pensamento democrático, a crise é mais sentida. E isso acontece justamente porque foi ali que as mudanças que transformaram tudo em mercadoria tiveram início.
O século 20 viu uma disputa feroz entre os adeptos de que o Estado era a melhor forma de organizar a sociedade contra os defensores de que o mercado seria mais eficiente. Era uma espécie de Fla-Flu radical, que terminou com a vitória do mercado. O historiador Tony Judt, no fabuloso livro Pós-Guerra – Uma história da Europa desde 1945, conta como os governos de Ronald Reagan, nos EUA, e Margaret Thatcher, no Reino Unido, mudaram o jogo. Dois grandes defensores do livre mercado, eles não apenas derrotaram as ditaduras comunistas como abriram caminho para uma era de mercadismo ensandecido. Os mercados financeiros foram desregulamentados, os impostos para grandes fortunas caíram e a ideia de que o mercado poderia resolver qualquer problema se instalou. O extremismo era tão grande que Thatcher gostava de dizer, por exemplo, que não existia sociedade, apenas indivíduos e famílias. Portanto, o Estado não devia se meter na vida de ninguém.
O problema desse pensamento, diz Judt, é simples: ele ignora que a sociedade existe, sim, e que as pessoas se movem não apenas por relações econômicas. Afinal, qual o benefício financeiro de ajudar alguém a encher uma laje ou oferecer um quarto que você poderia alugar para outras pessoas? A comunidade. A Europa foi capaz de sair da crise após a Segunda Guerra Mundial porque criou um modelo no qual as pessoas se viam partes de uma mesma sociedade, trabalhando em torno de um horizonte comum: reconstruir o continente e evitar uma nova guerra. Pense que a ideia de conciliar classes sociais com interesses distintos ganhou força neste contexto.
Democracia em risco
O extremismo de mercado é o equivalente ao extremismo de Estado. Numa sociedade em que dinheiro vale mais do que tudo e na qual tudo está à venda, então quem tem mais sempre terá mais poder. Ao longo do tempo, quanto mais poder elas têm, mais conseguem leis e regulamentações que as favorecem — mesmo que isso aconteça às custas das outras pessoas. Lawrence Summers, ex-reitor de Harvard e um dos principais economistas norte-americanos, é uma das pessoas que mais têm vocalizado essa tese — e ele está longe de ser um esquerdista radical. É um dos homens que mais advogou, ao longo dos anos 1990, pela desregulamentação dos mercados. Só que, tal como muitas pessoas da sua geração, percebeu que isso dá muito problema.
Num artigo para o jornal britânico Financial Times, um dos mais importantes do mundo, Summers conta que, nos EUA, a distância entre as crianças pobres e ricas, em termos de resultados educacionais, dobrou. As crianças mais ricas têm acesso a uma infinidade de coisas que as crianças mais pobres não têm. É como se elas tivessem ficado paradas nos anos 1970, enquanto as mais ricas avançaram para 2014. “Acabamos criando uma sociedade em que é muito difícil ascender socialmente”, afirma Summers. A exigência sobe, mas os meios para atendê-la não. Você trabalha sempre com as mesmas pessoas e conhece gente que sempre está no mesmo círculo social que você.
Estudo do Boston College sobre Riqueza e Filantropia, patrocinado pela Fundação Gates, mostrou que até os muito ricos sofrem nesse contexto. A pesquisa revelou que eles se sentem isolados socialmente. É como viver numa cidade provinciana, sempre com as mesmas pessoas, sempre com medo dos outros e sempre com medo do futuro. Qualquer coisa fora do normal pode se transformar numa ameaça. Basta ver o que aconteceu na época dos rolezinhos, no Brasil. Nunca houve um deles num dos shoppings das áreas nobres da cidade. Mas, por precaução, alguns reforçaram a segurança na porta. Eles não sabiam que a graça dos rolezinhos era ostentar — e não há como fazer isso num lugar em que as pessoas são muito mais ricas do que você.
Todas essas evidências estavam colocadas aí faz um tempo, é verdade. Mas é preciso que alguém anuncie o problema, elabore, para que a gente tenha consciência dele, como defendia o filósofo Ludwig Wittgenstein. O debate sobre os limites do mercado deve muito a duas pessoas. Pelo lado ético e moral, a Sandel. Para ele, uma das armadilhas do pensamento contemporâneo é acreditar que o mercado resolve todos os problemas — e não apenas os do próprio mercado. “Há uma tendência de cada vez mais o discurso público ser governado pelo pensamento de mercado. Nas últimas três décadas, o mercado dominou muitos aspectos da vida social e esvaziou o debate sobre ética”, disse Sandel (leia a entrevista no final da matéria).
Veja o que aconteceu em Fortaleza, durante o jogo Brasil e México, na Copa do Mundo. Três torcedores ofereceram dinheiro a funcionários do Castelão, em Fortaleza, para entrar no estádio vestidos de vendedor de água. Pagaram, ao todo, R$ 1,5 mil. Está dentro da regra de mercado: havia o colete, a oferta, eles foram lá e pagaram o preço. Mais tarde, saíram dizendo que, enquanto o Brasil for um país de terceiro mundo, coisas assim vão continuar acontecendo. Eles mal pararam para pensar nas consequências das suas ações. Preferiram colocar a culpa no país — e não neles.
Sandel vem alertando faz um tempo contra a tentação de ceder a uma única forma de organizar o mundo, ainda mais na sua versão radical. Passamos a tomar decisões não com base se elas são boas ou más, mas se são lucrativas ou não. Bem, alguém poderia dizer: mas onde estão as evidências de que isso está realmente acontecendo? É aí que entra outra pessoa que está mudando o planeta. O francês Thomas Piketty escreveu O Capital no Século 21 e provocou uma pequena revolução intelectual neste ano. Para Paul Krugman, vencedor do prêmio Nobel de Economia, o trabalho de Piketty colocou, finalmente, a desigualdade social no topo dos assuntos mais comentados — e passou a ser discutido por economistas de todo o mundo.